quinta-feira, 31 de março de 2011

Playlist

Uma bela canção persiste incompleta em meu playlist
Às vezes a ouço e lamento a falta de seu complemento
Às vezes penso que assim é que deve permanecer
Várias já passaram pela minha lista de preferidas
Mas ela continua lá, como a me cobrar ação
Como um mistério a ser desvendado:
Por que só metade de algo que era completo?
Ela me faz pensar sobre minhas incertezas
Sobre o porque de eu não saber como as coisas serão
Mantém-me vivo, resistindo
Mantém-na no playlist
Mantém-me ouvindo e vivendo.
Sergio Prado

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A Janela de Sergio




Este espaço não é meu, não tem dono. Aqui não existem as amarras da ética, religião, dogmas ou qualquer outro empecilho que possa, desrespeitosamente, atrever-se a impor censura. Se acaso a poesia por aqui passar, também ela terá que deixar de lado suas regras métricas, rimas, e abandonar o propósito de ser bela. Mesmo eu não sabendo se desta forma ela sobreviveria, sua obssessiva busca pela beleza também deverá ser refutada... O custo da sobrevivência é caro o suficiente para evitarmos estendê-lo à poesia. Pois então que morra para que, de sua ausência, possa nascer outra menos regrada.
A escrita será desnuda e, ainda que lhes pareça repulsiva, terá aqui somente sentimentos puros (não esqueçamos da ausência da censura), e serão puros os que eu assim senti-los, ainda que pareçam hediondos a quem me ler. Pode-se escrever com a alma sem a interferência do espírito? É isto que quero descobrir. Então que saia o Sergio que me cansa, e que entre a liberdade e a clareza de um ser livre de pensamento e de idéias que não serão como animais selvagens que necessitem ser domados, tampouco devam ser ventos a girarem moinhos. Então, que destas idéias não se façam proveito... Deixemos-nas correr livremente, soprarem sem direção certa, tendo na liberdade o único propósito. Refiro-me a minha liberdade.
Estas linhas também não são minhas, digo, não são do Sergio e não vêm com a agonia de seus dias atribulados. Vêm como uma psicografia ditada por ele mesmo quando consegue escapar às voltas do relógio, às mesquinhas exigências cotidianas que lhe roubam a criatividade e o tempo. Tempo não é dinheiro, é vida que se esvai sem remédio para o fluxo contínuo.  Quando aqui escreve, Sergio torna-se livre das comparações, avaliações ou julgamentos a que é submetido e que também se submete constantemente... Perde a casca; Cria um espelho para ver o que não enxerga durante a repetição dos dias.
Pobre Sergio que não se vê e nem é visto como realmente é. Sua visão deturpada priva-o de si mesmo durante quase todo o tempo, afinal ele é humano e a cegueira quase permanente não é defeito somente seu... Herdou-a de seus antepassados, assim como todos de sua espécie. Mas existe uma janela luminosa na caverna em que vive, e é através dela que ele se vê e também vê o mundo como ele realmente é. Somente quando dela se aproxima, ele escapa à escuridão.
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Neve de Verão Carioca

      Domingo à tarde, praia cheia, calor intenso e camada espessa de neve cobrindo a avenida. Cercado por uma multidão ansiosa por vê-lo patinar, o alemão tomava seu banho de sol. Ele era atual campeão olímpico de patinação no gelo e todos queriam ver como e com qual habilidade ele deslizava pelo gelo. Eu tinha minha parcela de responsabilidade no tumulto: sabendo de sua vinda ao Rio de Janeiro, providenciei tudo que meu cargo político voltado ao turismo permitia-me fazer para tornar aquele evento um grande acontecimento. Tal visita teve uma comoção maior do que eu esperava, lotando todos os hotéis das intermediações.
     O alemão não queria conversa... Tentei falar-lhe em inglês, mas ele me interrompeu com um ríspido “Aidontispiquinglish”. Providenciei uma intérprete e tentei nova investida, entretanto o alemão, de pele impressionantemente negra, tal qual os nativos de seu país, fazia-se de difícil. Ele veio ao Rio apenas para descansar, mas eu não podia decepcionar toda aquela gente que eu fizera aglomerar na ampla e interditada avenida do mar. Poucos eram os que aproveitavam o sol de quarenta graus para refrescar-se na praia que se avizinhava. Na areia não havia neve... Ela sequer caia ali. Era um limite natural de respeito mútuo: a areia não se metia na cidade e nem a neve caía nos domínios praianos.
     Uma idéia genial me ocorreu: Chamei Zé Maria (o alemão de nome de complicada pronúncia) que naquela altura evitava até olhar para mim e mostrei-lhe a incrível mágica na qual se junta o indicador dobrado de uma mão ao polegar da outra, dando-lhe a impressão que eram o mesmo dedo e os separei, causando tremendo susto no negrão.
      — Voodoo! — gritou ele saltando de sua cadeira de praia. — Isto nem as poderosas entidades afros de meu país eu vi fazer. — traduziu minha intérprete arranjada de última hora.
      — Tão impressionante quanto esta magia, seria você patinar para estas pessoas que vieram até aqui para vê-lo — falei ao alemão que olhou ao redor e viu a imensa quantidade de crianças cariocas, brancas como a neve, cara de pidonas e atentas aos seus movimentos. Silenciou-se por alguns instantes, ponderando.
       — Faça-lhes uma magia — pedi-lhe. — Mostre que seu país é de gente humilde de posses, mas rico em generosidade... Impressione estas crianças que tem a patinação como a maior paixão esportiva do país.
      Ele pensou por mais alguns instantes e, por fim, pediu-me que raspasse a neve fofa que cobria o solo, para que a camada mais rígida que havia embaixo pudesse tornar a patinação praticável.
     Sem perda de tempo providenciei tratores que com suas pás rasparam quilômetros da neve da beira-mar. Sobrou o gelo batido no qual o Alemão patinou durante horas com sua parceira olímpica... Pareciam anjos aos olhos da gente abastada que nunca tivera contato com um patinador daquele nível. Devido ao nome de difícil pronúncia, apelidaram-no de Pelé e o apelido tornou-se famoso no mundo inteiro. A avenida beira mar, com seus mais de cinqüenta metros de largura e muitos quilômetros de extensão, foi pequena para os patinadores anônimos que também começaram a se divertir e minúscula para tanta emoção. O pessoal não se importava com a vermelhidão causada pelo sol que, ao contrário do que fazia com suas peles, não molestava o gelo.
      Meses depois daquela tarde, foram instalados teleféricos que levavam ao topo, os esquiadores que deslizavam pelo Complexo do Alemão (nome dado ao condomínio em referência ao famoso patinador). Os cariocas, esquiadores, patinadores e amantes dos esportes no gelo, esquiavam por entre as suntuosas casas, dos luxuosos condomínios que se estendiam do topo aos pés dos morros. Foram aproveitadas várias das largas passagens que cortavam o complexo para proporcionar diversão e o exercício daquele esporte popular que, havia tempos, substituiu o esporte dos ricos: o elitizado futebol. Ao alcançarem o fim do terreno íngreme, no plano, os esquiadores trocavam seus equipamentos e passavam a patinar em espaço reservado, sonhando ser aquele campeão olímpico que, da Alemanha, via pela teve as transformações que causara em terras brasileiras. Zé Maria vislumbrou ser possível fazer algo similar em seu país limitado de recursos. Praticou a mágica dos dedos antes de conversar com importantes governantes e, após longa reunião, ele conseguiu: neve artificial passou a cobrir várias montanhas alemãs e muita diversão foi proporcionada às crianças carentes das comunidades.
      A boa vontade misturada a um pouco de magia e muita fantasia, invariavelmente, transformam-se em realização.


Homenagem ao povo carioca que sonha em viver a magia da paz.